domingo, 6 de novembro de 2011

Allan Hahnemann: Direitos Humanos e Violência Policial em Goiás - Quando a dor vira resistência!

Allan Hahnemann Ferreira*

As minhas flores, plantadas (vermelhas, preocupadas) Lá no fundo do quintal, Falam de corpo na maca, Marcado de medo e taca, Na terra do carnaval. (Wilmar Alves)[1]

O termo resistência tem sido freqüentemente utilizado pela academia (Universidade) nos trabalhos que tratam da temática das lutas populares, assim, caracteriza um conjunto de práticas, ações e reações, empreendidas pelos grupos dominados, com o objetivo de perseverar-se frente a ação indesejada de determinados segmentos dos grupos dominantes. Quase sempre a resistência tem um caráter defensivo, seja pela sua própria natureza semântica, de sobrevivência dos grupos ameaçados, ou seja, uma contra-ação, uma reação, numa correlação de forças adversa, ou seja, o inimigo quase sempre é mais forte e se impõe.

É nessa conjuntura de uma correlação de forças adversa e resistência que surge o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial, em 28 de Abril de 2006, que tem como lema “QUANDO A DOR VIRA RESISTÊNCIA!”.

O Comitê é uma rede de associação de vítimas e familiares de vítimas da violência policial, que reuniu, ainda, em uma rede de solidariedade e articulação, entidades não governamentais, advogados populares, parlamentares, estudiosos, dentre outros. É importante frisar que o Comitê tem funcionando até o presente momento muito precariamente, contando somente com a força “da dor que vira resistência” e com a boa vontade das famílias enlutadas e de algumas entidades voluntárias.
A motivação de criação do mesmo decorre da constatação, muitas vezes dentro da própria realidade familiar e social das altas taxas de homicídios praticados por agentes estatais, em especial, por determinados segmentos da polícia militar do Estado de Goiás.

A violência policial é umas das diversas manifestações de violência que se atualizam cotidianamente na sociedade contemporânea, e esta malfada prática estatal, alcança na maioria das vezes adolescentes e jovens, que são desrespeitados, agredidos, roubados, torturados, mortos ou desaparecem após abordagem da polícia.

Assim, definida como sendo uma violência contra indivíduos e grupos, esta violência é reconhecida como institucional - oficial, é protagonizada por agentes do Estado, frise-se, forças policiais, atingindo, sobretudo, integrantes das classes populares. As vítimas e os próprios familiares dessas vítimas são pessoas cujo percurso de vida já é marcado pela violência estrutural: não acesso à moradia, estudo, lazer, atenção à saúde, trabalho, cultura e segurança pública.

Dessa forma o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial tem lutado perseverantemente em busca da tão aclamada justiça social! É nessa conjuntura de resistência ampliada que diversos advogadas, advogados, estudantes de direito, juristas, defensores de Direitos Humanos militantes da Articulação de Esquerda (PT-AE) têm atuado em prol das vítimas e familiares das vítimas da Violência Policial em Goiás. As advogadas, os advogados, estagiários e estagiárias, coletivo popular de advogados vêm atuando desde o surgimento do Comitê como assistentes de acusação das vítimas nos processos já em fase de inquérito ou judicial.

Ademais, são várias outras atividades de cunho da assessoria jurídica popular que se desenvolve em prol das vítimas da violência policial que extrapolam as atividades estritamente jurídicas, como denuncias regionais, nacionais e até mesmo internacionais diante das violações de direitos humanos constatadas, além do próprio aconselhamento jurídico e até mesmo de cunho psicológico.

Assistimos e assessoramos os denominados “grupos vulneráveis” mencionados nos Planos Nacionais de Direitos Humanos, como trabalhadoras/es rurais, famílias atingidas pela construção de barragens, posseiros, agricultores familiares, trabalhadores sem teto urbanos, povos indígenas, grupos afro-descendentes e remanescentes de quilombos, vítimas de violência policial, vítimas de violência doméstica, vítimas de violências de cunho racista, homofóbico, machista, dentre outras demandas, sempre umbilicalmente ligadas às violações de direitos humanos, às garantias e direitos constitucionalmente fundamentados.

Tem-se atuado desde o surgimento do Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial assessorando as vítimas e familiares de vítimas. Em todo esse período, foi uma das entidades mais atuantes, que mesmo sem qualquer apoio institucional de projetos de assistência em direitos humanos, ou quaisquer outros incentivos financeiros, continuou firme e resistente na defesa da VIDA! Não se pode omitir as dificuldades vividas nacionalmente, e em Goiás, não seria diferente, por advogados e advogadas populares, um dos grandes desafios dessa prática de assistência e assessoria jurídica popular estaria calcada no quesito sustentabilidade. Enfim, as dificuldades e desafios são enormes quando se tratam dessa temática.

Os discursos punitivistas da “Lei e Ordem” e da “Tolerância Zero”, levadas a cabo por políticas criminais de repressão máxima, acabam por legitimar o uso da violência física e simbólica pelas forças policiais em face de segmentos sociais vulnerabilizados pela própria condição material ou mesmo devido ao processo de enfrentamento e luta em busca da efetivação dos direitos humanos.

De 1980 a 2000 foram registrados 6.003 casos de uso abusivo da força policial no Brasil, noticiados pela imprensa nacional, sendo que, para cada ocorrência, se registrou pelo menos uma morte, totalizando 64% dos crimes de homicídio a partir de 1989, dados estes já bem consolidados no âmbito nacional, segundo Sérgio Adorno, Nancy Cardia e Frederico Poleto[2].

No que tange ao exercício do “poder punitivo subterrâneo”, em especial, da violência policial em Goiás, particularmente, em Goiânia e sua região metropolitana, têm-se refletido sobre os homicídios (execuções), desaparecimentos após abordagem policial e agressões físicas praticadas pelas forças policiais no desempenho de suas funções institucionais. Tem-se visualizado durante anos de trabalho feito em parceria com o Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial (CGFVP), desde 2006 à atual, atuando em diversos casos de “execuções sumárias”, “desaparecimentos” e agressões praticadas por agentes das forças policiais em Goiás.

O Comitê Goiano pelo Fim da Violência Policial pretende, além da denúncia dos casos de violência policial, ampliar o seu trabalho, identificando outras situações em que a população encontra-se sujeita às arbitrariedades da ação policial, como é o caso de comerciantes que são saqueados ou extorquidos, de trabalhadores informais (ambulantes, catadores de materiais reciclados, profissionais do sexo, dentre outros), que sofrem agressões físicas e psicológicas no desenvolvimento de suas atividades, e, principalmente, os casos de jovens pobres, que sofrem abordagens policiais truculentas, as famosas “revistas” ou “baculejos” ostensivos e violentos. São diversos os relatos de abuso de força policial e de tortura.

A reportagem do dia 09/01/2011, Jornal O Popular, trazia que o número de desaparecidos em Goiás após “supostas” abordagens policiais nos últimos dez anos era maior que o número de goianos desaparecidos políticos durante o regime militar. A pesquisa revelava inicialmente que 23 pessoas estavam desaparecidas no período compreendido entre 2000 e 2010 após abordagem da Polícia Militar, sendo que, entre 1968-1979, durante os mais duros anos do regime militar, 15 militantes políticos haviam desaparecido em Goiás.[3]

Em matéria datada de 12 de março de 2011, o mesmo Jornal O Popular, noticia que já se contabilizava 35 “desaparecidos” depois de supostas abordagens da polícia militar, sendo destes, 02 mulheres e 33 homens.[4]

Os “indícios” e “evidências” apontam para a existência consolidada de “grupos de extermínio” em Goiás, especialmente, dentro da Polícia Militar. Esses grupos “desapareciam” suspeitos ou investigados, “desapareciam” sujeitos que já haviam sido processados criminalmente pela Justiça e ainda “executavam sumariamente” diversos outros “suspeitos” em simulados “confrontos policiais”.

Assim, em outra matéria de 16 de fevereiro de 2011 o mesmo jornal traz que em 07 anos foram totalizados 224 mortes em “confrontos” com policiais militares, o que significaria uma média de 9% dos homicídios ocorridos em Goiânia no mesmo período, segundo dados da Delegacia de Investigação de Homicídios da capital goiana. Segundo a referida Delegacia, neste período foram registrados 2.429 homicídios na capital, destes 224 teriam sido praticados por policiais militares durante operações policiais, ou seja, supostos “confrontos”. Todos esses casos teriam sido investigados pela Corregedoria da Polícia Militar, pela Delegacia de Homicídios e pelo Ministério Público de Goiás.[5]

O jornal O Popular apresentou, em reportagem datada de 20 de fevereiro de 2011, dados da Polícia Civil de Goiás, em que, constata-se que em 2010 foram 50 (cinqüenta) pessoas mortas em supostos “confrontos” com as forças policiais. Em 2009 teriam sido 27 pessoas e em 2004 contabiliza-se 61 pessoas assassinadas nas mesmas circunstâncias.[6]

De 1998 a 2008, conforme aponta o Mapa da Violência 2011, a taxa de mortes de jovens (15 a 24 anos) por homicídio em Goiás subiu de 19,6 para 57,7 a cada 100 mil habitantes, um crescimento de cerca de 200%, enquanto o crescimento nacional foi de cerca de 10% no mesmo período. Goiás está em 7º lugar entre os Estados com maiores taxas de homicídios de jovens.[7]

O intitulado sistema punitivo subterrâneo[8] acaba legitimado socialmente e institucionalmente a eliminar da face da terra os ditos “inimigos”, “refugos”, as “classes perigosas”. É essa legitimidade social que acaba por “autorizar” simbolicamente os “batalhões da morte”, os “justiceiros”, os “esquadrões da morte”, as “chacinas” contra favelados e movimentos sociais, bem como, os diversos casos de “violência policial”, torturas, abusos de autoridade, corrupções, extorsões, enfim, ‘execuções sumárias” e “desaparecimentos”, como acima descrito, e que acabam por ganhar grande projeção na opinião pública e mesmo no senso comum pela divulgação dos veículos de comunicação de massa.

Esta legitimação social para “matar legalmente” opera da seguinte forma, como nos ensina, Zaffaroni e Nilo Batista, o discurso jurídico oficial da “Tolerância Zero” e da “Lei e Ordem”, legitima e estimula o poder punitivo discricionário e, conseqüentemente, acaba por se negar a realizar qualquer esforço em limitá-lo ou restringi-lo, ou seja, escolhe a inércia e a omissão para os casos mais nefastos, assim, o próprio sistema penal subterrâneo amplia seu espaço político, sua legitimidade social e política para o livre exercício de qualquer modalidade do poder punitivo. Ademais, Nilo Batista e Eugênio Zaffaroni advertem que o sistema penal subterrâneo não é exclusividade da América Latina ou mesmo de países periféricos fora do eixo principal de desenvolvimento e riqueza do capitalismo, isto é, sua existência é reconhecida em todos os sistemas penais mundiais. [9]

Os discursos propagadores da “tolerância zero” e da “lei e ordem” acabam, também, por dar o retoque final na legitimidade social dada ao sistema penal subterrâneo. Dessa forma, a violência institucional-policial passa ser vista como uma “técnica” natural, que está passível de pequenos erros e negligência, tudo isso, dentro da lógica do controle social do poder punitivo máximo.

Acentua Gabriel Anitua que esta violência policial seria aceitável pela maioria da população, opinião pública, pois está contida nessa política de combate à criminalidade, está presente na “guerra” contra a delinqüência, na luta contra a violência e os crimes praticados pelos “outros”, pelas “classes perigosas”. Nessa lógica de “guerra” as baixas dos “inimigos” contam a favor e não contra o exército da “segurança cidadã”[10].

Quando a polícia executa ditos “criminosos”, seja em reais ou supostos conflitos, recebe com freqüência o aplauso da mesma opinião pública, além de muitas vezes receber o apoio, a guarida, e ainda, o elogio institucionalmente formatado. Nesses casos, o brocardo policialesco, “bandido bom é bandido morto!”, ganha uma conotação de clamor público, assim, o combate à criminalidade comum acaba por sobrepujar a aplicação da lei penal e mesmo subjugar a proteção da sociedade.  

O sistema penal subterrâneo continua forte e atuante, é uma permanência continua na história do poder punitivo no Brasil e em Goiás, que aos “ouvidos moucos” e “tapa olhos” do poder punitivo oficial continuam executando sumariamente, desaparecendo “suspeitos”, torturando, deflagrando procedimentos policiais ilegais e cruéis “num amplo programa de feições genocidas”[11].

Desde o surgimento do Comitê Goiano pelo fim da Violência Policial (2006) vinha-se denunciado os diversos indícios e pistas encontrados nos mais de 30 processos penais componentes deste Comitê, evidenciando a existência, não somente de um, mas de vários grupos de extermínios dentro das forças policiais de Goiás, em especial da Polícia Militar.

A hipótese do Cerrado AJP, bem como, de outras entidades como a Casa da Juventude (CAJU) e a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de Goiás (CDH – ALEGO) fora confirmada no dia 15 de fevereiro de 2011 com a deflagração da operação denominada “Sexto Mandamento” – Não Matarás!, da Polícia Federal.

Neste momento é imprescindível fazermos a memória de que outras ações, com a ressalva de terem tido uma menor repercussão, já foram realizadas, em especial pela Polícia Civil e Ministério Público do Estado de Goiás, criminalizando e encarcerando outros policiais militares, acusados de estarem envolvidos em outros casos de violência policial, tais como, “grupos de extermínio”, “execuções sumárias”, dentre outras violências.

 Vejamos cronologicamente no quadro abaixo alguns desses casos:

QUADRO II – Casos de Violência Policial com prisões de policiais militares anteriores à Operação Sexto Mandamento - 2011
CIDADE E ANO
RESUMO DO CASO
Novo Gama – 1999
Foram presos 19 policiais militares acusados de participarem da “execução sumária” do carroceiro José Roberto Correia Leite, o Bertinho. Todos seriam integrantes de um grupo de extermínio que agia na região. Até 2010 vários destes policiais ainda não haviam sido exonerados da polícia militar e ainda recebiam os soldos do Estado de Goiás.
Águas Lindas de Goiás e Entorno do Distrito Federal (DF) – 2000
O líder comunitário João Elísio foi morto em 2000 em Águas Lindas de Goiás. As investigações apontam que o mesmo foi morto por policiais que atuavam em grupos de extermínio. O líder comunitário estava exatamente denunciado a existência de tais “esquadrões da morte”, bem como, as “execuções sumárias” perpetradas na região, em especial, em face de supostos criminosos que haviam cometido pequenos delitos. Diversos grupos, entidades e movimentos de defesa e promoção aos Direitos Humanos denunciaram na época a ação de agentes policiais em grupos de extermínio em cerca de 12 municípios do Entorno do Distrito Federal.
Planaltina de Goiás – 2005
A polícia civil prendeu 10 acusados de integrarem um grupo de extermínio em Planaltina de Goiás em 2005. Em apenas dois anos os acusados teriam executado sumariamente 53 pessoas no município. As ditas “vítimas” supostamente haviam cometido pequenos delitos, tais como, furto, roubo e tráfico de drogas. O processo criminal ainda está em trâmite.
Valparaíso – 2005
Foram presos 04 acusados de integrarem um grupo de extermínio em Valparaíso em 2005, entre eles, policiais militares. Teriam executado sumariamente 18 pessoas no próprio município e em cidades do Entorno do Distrito Federal. O grupo de extermínio teria ainda perpetrado uma tentativa de homicídio em face do prefeito de Valparaíso na época, José Valdécio, e ainda, em face de promotores e juízes de Brasília.
Aragarças – 2008

No início de 2008 seis policiais militares, entre eles dois tenentes, um sargento e três soldados, foram presos acusados de comporem um grupo de extermínio em Aragarças (GO) e Barra do Garças (MT). Estão sendo acusados de executarem sumariamente 09 pessoas e mais uma tentativa de homicídio, além do “desaparecimento” de outras mais. O grupo de extermínio estaria agindo desde 2006 e seu núcleo estava estruturado dentro do Grupo de Patrulhamento Tático (GPT) de Aragarças. As pessoas executadas eram, em sua maioria, acusadas de serem envolvidas em pequenos delitos, tais como furto, roubo, uso e posse de droga, bem como, tráfico de entorpecentes. Durante as investigações ocorreram diversas tentativas de intimidação das autoridades à frente dos inquéritos e processos criminais. Entre estas, pode-se citar que a casa da Delegada da Polícia Civil que investigava os casos foi alvejada por tiros, bem como, o seu carro foi riscado com a letra M (fazendo referência a palavra “morte”), assim, a mesma acabou afastada da cidade e das investigações por motivo de “segurança pessoal”. As promotoras de justiça que atuavam nas investigações dos casos passaram a andar com escolta policial 24 horas por dia, bem como, tiveram que mudar para o município vizinho de Barra do Garças (MT). Os policiais militares presos na dita operação foram encaminhados para a carceragem do presídio militar da capital goiana, intitulado Batalhão Anhanguera. Durante a prisão destes militares o próprio Ministério Público recebeu denúncias indicando que os presos recebiam privilégios (TV, DVD, celular, entregas à domicílio de remédios e alimentos, etc.) e ainda, poderiam sair da cadeia militar quando quisessem para fazer qualquer atividade, até mesmo para “festas e bebedeiras”. Diante desses motivos os presos acabaram sendo transferidos para o Presídio Federal de Campo Grande (MS), sendo que, um deles, o sargento Celso, acabou fugindo do próprio presídio militar antes de ser transferido.
Outras Cidades – 2008
A partir de 2008 a Polícia Civil de Goiás estava investigando a existência de grupos de extermínio, com a participação de policiais militares, em sete cidades: Goiânia, Aparecida de Goiânia, Rio Verde, Jataí, Santa Helena, Mineiros e Aragarças. O Ministério Público incluiu em tais investigações as cidades de Formoso, Inhumas e Hidrolândia. Não se tem notícia de nenhum processo criminal, e mesmo de nenhuma prisão, em decorrência das referidas investigações que ainda estavam (e estão) em andamento.
Fonte: MELO, Rosana e MARCOS, Almiro. Sexto Mandamento. Polícia Federal garante que investigação está só começando. Objetivo é desvendar mais de 40 crimes em que há suspeita de envolvimento de policiais. Jornal O Popular. 16 de fevereiro de 2011. Também disponível em: http://www.opopular.com.br/#16fev2011/cidades-50646/sexto_mandamento_-_policia_federal_garante_que_investigacao_esta_so_comecando

A dita operação prendeu preventivamente 19 policiais militares que estão sendo investigados pela Justiça Federal, dentre eles o ex-subcomandante geral da PM-GO, por serem acusados de participarem de um grupo de extermínio que teria executado sumariamente mais de 50 pessoas em Goiânia e outras cidades do Estado de Goiás.

Não se pretende aqui usar a categoria impunidade para caracterizar a não punição de diversos policiais envolvidos em várias violações de direitos humanos, entre elas homicídios e torturas em casos do Comitê. Entende-se que essa nomenclatura pertence ao conjunto de conceitos e categorias criadas para manter um quadro de desigualdade social, ou seja, pertencem ao léxico verbal das forças conservadores e elitistas que perpetuam as exclusões sociais no país.

Prefere-se utilizar a nomenclatura de “ilegalismos privilegiados” para tratar dos policiais envolvidos em crimes de violência policial/estatal, ao invés de impunidade num país que se pune demasiadamente, em especial as pessoas, segmentos e movimentos ligados aos “grupos vulneráveis”. São atualmente mais de 490 mil presos, num processo de ultra encarceramento, na sua grande maioria pertencente às classes populares.

Vera Malaguti Batista apontou que em 1994, o Brasil tinha cerca de 110.000 presos[12]. Entretanto, dessa época até os dias atuais (2010), o contingente de encarcerados só aumentou exponencialmente. Do período de 2003 a 2010 verifica-se um crescimento de cerca de 63,98% do encarceramento no Estado de Goiás, enquanto a média brasileira do mesmo período registra cerca de 62,13% de aumento, veja-se dados absolutos do Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário[13]:

TABELA I – Dados Encarceramento Brasil
ANO
TOTAL DE PESSOAS PRESAS

BRASIL
GOIAS
2000
232.755
-----
2001
233.859
-----
2002
239.345
-----
2003
308.304
7.576
2004
336.358
7.782
2005
361.402
9.802
2006
401.236
9.900
2007
422.590
9.624
2008
451.429
10.603
2009
473.626
11.118
2010
496.251
11.841
          Fonte: Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário (Dezembro 2010).

Em 1994 encarcerava-se 110.000 mil presos no Brasil, em 2010 (Dezembro) encarcerava-se 496.251 detentos. A população carcerária mais que quadriplicou, logo, vê-se que a política do ultra encarceramento anda em “banda larga” em terras brasilis!

Ao contrário de contrariar o projeto neoliberal, o fracasso na regulamentação e a degradação do setor público de encarceramento, significaram uma política triplamente benéfica, implantam uma política de criminalização da pobreza crescente, re-implantam programas de assistência social reformulados numa face punitivista, e ainda, reforçam a disciplina do trabalho assalariado dessocializado e precário.

Como defendido, enquanto o aumento do poder punitivo e mesmo o sistema prisional em todo o mundo, em especial nos EUA, produz “mais valia” abarrotando, diretamente ou indiretamente, os bolsos dos Estados e dos empresários dessa indústria lucrativa, transformando o sofrimento humano e a privação de liberdade em mercadoria ultra lucrativa, verdadeiro business; na outra monta, a sua mesma clientela (presos e criminalizados) produz o anti-valor da “menos valia”.

A violência policial atual não é advento meramente do processo econômico do neoliberalismo, mas sim, faz parte de uma gama de tradições e fantasias absolutistas de controle absoluto e fascista, que tem suas origens históricas ligas à um acúmulo de permanências punitivistas.

Desde o Brasil Colônia com o genocídio de índios e negros escravizados, haja vista, a permanência e a construção heróica e mitificada do bandeirante “O Anhanguera”, que ainda hoje enquanto símbolo do descobrimento de Goiás persiste e vive, sendo que, o mesmo Bartolomeu Bueno Silva, o filho, ganhou o título de 1º comandante geral de Honra da Polícia Militar em Goiás.

Passando pelas repressões criminais violentas às revoltas no Brasil Republicado, como a criminalização, a violência estatal e os diversos homicídios praticados em face dos posseiros de Trombas e Formoso, para não aprofundar em outros conflitos de terra entre posseiros e grileiros/latifundiários, onde o Estado teve uma atuação quase sempre a favor da manutenção do status quo vigente.

O período da Ditadura Militar também contribuiu imensamente para essa herança nefasta de punitivismo e genocídio praticado pelas forças policiais/estatais. Em Goiás tivemos mais de 15 mortes e desaparecimentos oficiais, além de centenas de militantes presos e torturados.

Sabe-se que no caso brasileiro as forças policiais guardam ainda uma herança nefasta do período da Ditadura Militar, especialmente no âmbito da formação educacional dos policiais militares. Fato este agravado pela Anistia ampla e irrestrita, que preferiu ‘colocar os problemas embaixo do tapete’, sendo que, não houve uma negociação democrática e amplamente debatida com a sociedade dos problemas que envolviam o militarismo. Assim marcas profundas da repressão política militar foram gravadas institucionalmente nas forças policiais, delineando até os dias atuais, relações entre o Estado e a sociedade, o governo e a comunidade, a autoridade e o cidadão.

Com o advento do neoliberalismo a conjuntura de repressão e criminalização aos grupos, movimentos sociais e segmentos populares não diminui, ao contrário, agrava-se. É a formação do ‘Estado Centauro’[14], que é guiado por uma cabeça liberal montada sobre um corpo autoritário. A relação paradoxal anatomicamente é totalmente harmoniosa para a manutenção do sistema neoliberal. Repressão penal máxima e neoliberalismo são indissociáveis. A hiper-inflação penal que compõe o poder punitivo cumpre a função de “encarcerar” e “eliminar” a insegurança material, oriunda da desregulamentação econômica gerada pelo “laissez-faire, laissez-passer”.

Não é diferente no Estado de Goiás, tampouco na capital Goiânia, a nossa política de segurança pública, se pautam na ideologia da “Tolerância Zero”, são políticas públicas de segurança chamadas de “lei e ordem” de repressão máxima e violência estatal extrema.

Um outro momento de resistência ampliada se antecipa. Entendendo, que a resistência surge e se fortalece em esperança e força quando as ditas vítimas e demais lutadores pela concretização dos direitos humanos experimentam de forma negativa à imposição de novas relações que ameaçam valores compartilhados, derivando, portanto, daí a necessidade de reagir de modo a conservar tais valores e constituindo o ponto de partida que pode conduzir à transformação ou superação desses antagonismos.
 Propomos para pensar o próximo período de lutas e resistências:
·                 Articular com mais segmentos sociais, movimentos, entidades e grupos que atuam na luta em favor dos direitos humanos;
·                 Re-articular uma rede estadual de direitos humanos atuante nos mais diversos setores da sociedade goiana;
·                 Ampliar a luta de resistência e perseverança a favor da VIDA e contra a violência policial;
·                 Realizar denúncias articulando com os diversos veículos de comunicação existentes;
·                 Instalar espécies de fóruns e/ou conselhos locais pelo fim da violência policial, procurando apoio das classes populares, onde a violência policial é praticamente um exercício cotidiano;
·                 Travar a luta institucional na Universidade, no Judiciário, no Executivo e no Legislativo em prol de apoio à luta contra a violência policial;
·                 Pesquisar profundamente os dados da violência policial no estado de Goiás, identificando a faixa etária, a etnia, a escolaridade, o sexo, os locais em que residem as vítimas dessa malfadada prática;
·                 Divulgar tais dados da violência policial no Estado de Goiás editando um Caderno ou mesmo uma Revista, tal como, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) tem feito com os conflitos agrários.

PELO TRIUNFO DA VIDA SOB A MORTE! PELO FIM DA VIOLÊCIA POLICIAL!


“Mas ainda é cedo para que a noite triunfe sobre o dia; para que a túmulo celebre sua festa de vitória sobre a vida!" (Wladimir Ilich Lenin)

Allan Hahnermann é advogado e mestre em direito pela UFF, membro do Cerrado Advocacia Jurídica Popular e da Rede Nacional de Advogados Populares, professor da UFG e militante do Partido dos Trabalhadores. 


[1] Poema escrito pelo jornalista Wilmar Antônio Alves (13/04/1950 – 20/06/2006) de dentro do CEPAIGO (Centro Penitenciário de Atividades Industriais do Estado de Goiás), hoje conhecido como Agência do Sistema Prisional, para onde foi levado após ser preso pela Ditadura Militar em julho de 1972. In: SALLES, Antônio Pinheiro (coordenador). A ditadura militar em Goiás: depoimentos para a história. Goiânia: Poligráfica Off-set e Digital, 2008, p.175-176.
[2]ADORNO, Sérgio.; CARDIA, Nancy.; POLETO, Frederico. Homicídio e violação de Direitos Humanos em São Paulo.In: Estudos Avançados, Nº. 47, São Paulo, 2003.
[3]Onde eles estão? Eles desapareceram na democracia. Jornal O Popular. 09 de Janeiro de 2011. Também disponível em http://www.opopular.com.br/#09jan2011/cidades-42922/23_onde_eles_estao_-_eles_desapareceram_na_democracia
[4]AQUINO, Macloys. Jornal O Popular. Onde eles estão? Sumidos após abordagem já são 35. Cidades, p.02-03. Data 12/03/2011. Também disponível em: http://www.opopular.com.br
[5]MELO, Rosana e MARCOS, Almiro. Sexto Mandamento. Polícia Federal garante que investigação está só começando. Objetivo é desvendar mais de 40 crimes em que há suspeita de envolvimento de policiais. Jornal O Popular. 16 de fevereiro de 2011. Também disponível em: http://www.opopular.com.br/#16fev2011/cidades-50646/sexto_mandamento_-_policia_federal_garante_que_investigacao_esta_so_comecando
[6]Sexto Mandamento. Polícia matou 50 pessoas em 2010. Jornal O Popular. 20 de fevereiro de 2011. Também disponível em: http://www.opopular.com.br/#20fev2011/cidades-51711/sexto_mandamento_-_policia_matou_50_pessoas_em_2010
[7] WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil. Brasília: RITLA, Instituto Sangari, Ministério da Saúde e Ministério da Justiça, 2011, p.21. Disponível em: http://www.sangari.com/mapadaviolencia/.
[8]CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação. Pensamento criminológico, 10. Rio de Janeiro: Revan, 2005. Ver também CASTRO, Lola Aniyar de. Derechos humanos, modelo integral de ciência penal y sistema penal subterrâneo. Revista Del Colegio de Abogados Penalistas Del Valle. N.13. Cali: 1985.
[9]ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro., 2003, op. Cit., p.69-70.
[10] ANITUA, Gabriel Ignacio, Histórias dos pensamentos criminológicos, Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Rio de Janeiro:  Editora REVAN, 2008, p.786.       
[11]ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro., 2003, op. Cit., p.479.
[12]MALAGUTI BATISTA,Vera. A questão criminal no Brasil contemporâneo. In: Revista Margem Esquerda - Ensaios marxistas, n. 8. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 40-41.
[13] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA - Sistemas Penitenciários Estadual, Federal e da Polícia- Dados dos Presos, levantamento realizado pelo Ministério da Justiça/DEPEN. Dezembro 2010. Disponível em:http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm
[14] WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro: REVAN, 2003.