domingo, 1 de abril de 2012

Verdade sem justiça, história que se repete

Na última semana, integrantes do governo se mobilizaram para garantir que a Comissão Nacional da Verdade não saia da agenda da presidenta Dilma Rousseff que, apesar de ter sancionado a lei que cria o grupo, ainda não escolheu seus membros. Estela de Carlotto, presidenta da Associação das Avós da Praça de Maio, que luta para descobrir o paradeiro de milhares de filhos de militantes de esquerda sequestrados pelo Estado argentino durante a ditadura do país vizinho (de 1976 a 1983), esteve no país e participou de reuniões no Ministério da Justiça e na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Em outubro, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei que cria a Comissão, a qual terá a responsabilidade de examinar os crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes públicos durante o período que se estende de 1946 a 1988. Os membros da Comissão terão acesso a todos os arquivos oficiais referentes ao período e poderão convocar vítimas e seus algozes a prestar depoimentos, apesar de que a convocação não terá caráter obrigatório. Após os dois anos de duração da Comissão, esta irá publicar um relatório com suas descobertas. Ela não será obrigada, no entanto, a revelar tudo o que descobrir. Poderá escolher se irá revelar uma informação somente à presidenta e ao ministro da defesa Celso Amorim ou ao público em geral.

Cabe agora à presidenta Dilma indicar os sete membros da Comissão para que ela enfim saia do papel, após mais de dois anos de muitas negociações e polêmicas. Originalmente prevista no III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III), assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2009, a Comissão previa a apuração dos crimes cometidos pelos agentes públicos durante o regime militar iniciado em 1964. No entanto, após pressão dos militares, o projeto foi alterado em alguns pontos para atender às demandas deles. Em vez de englobar apenas o regime militar (1964-1985), como previa o projeto original, a Comissão irá investigar os crimes ocorridos entre 1946 e 1988. A proposta anterior também fazia menção à "repressão política" existente no país, termo suprimido do texto aprovado pelo Congresso.

Os militares também pressionaram para que a Comissão mantivesse seu caráter não-punitivo e preservasse a natureza da Lei de Anistia. A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) havia proposto que a Lei de Anistia fosse revogada e que as investigações feitas pela Comissão pudessem ser encaminhadas para a Justiça, o que não foi aprovado. Em vigor desde 1979, durante o processo de redemocratização do Brasil, a Lei de Anistia proíbe a responsabilização penal daqueles que cometeram crimes políticos durante a ditadura militar. Em abril de 2010, instado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 7 votos a 2, manter o caráter da Lei de Anistia para os chama dos crimes contra a humanidade que, segundo a Constituição de 1988, não podem ser passíveis de anistia nem de prescrição.

Na última quinta-feira, 22, o STF adiou a discussão que faria sobre o alcance da Lei de Anistia. A OAB interpôs embargo questionando se o entendimento da corte também se aplica aos crimes de desaparecimento político – sequestros de militantes cujos corpos ainda não foram encontrados. No início do mês, procuradores do Pará entraram com uma ação na Justiça contra o coronel Sebastião Curió pelo sequestro de cinco militantes comunistas que atuaram na guerrilha do Araguaia na década de 1970. Eles argumentam que, como os corpos jamais foram encontrados, não se pode definir uma data para o final do crime. Portanto, o sequestro ainda estaria ocorrendo, não sendo passível de anistia. A questão deve ser analisada pelo plenário do STF na próxima quarta-feira, 28.

Enquanto a questão não é decidida, os familiares das vítimas da ditadura têm na Comissão da Verdade a última esperança de que o Estado brasileiro lhes esclareça o que se sucedeu com seus parentes. No entanto, a estrutura da Comissão, prevista na lei sancionada pela presidenta Dilma, gerou críticas dos militantes de direitos humanos. Eles reclamam que a Comissão terá um tempo muito curto para analisar os casos de um período muito extenso, o que impossibilitará que o trabalho de seus membros seja feito de maneira minimamente satisfatória. Os ativistas também criticaram o caráter não-punitivo da Comissão, apontando-a como uma não contribuição à justiça histórica.

Ao contrário do que ocorreu noutros países sul-americanos que passaram por ditaduras, como Argentina, Chile e Uruguai, nenhum militar brasileiro jamais foi condenado pela Justiça por ter cometido crimes políticos durante o regime militar. Além de afrontar os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a Lei de Anistia que perdoa a violência policial do passado estimula a truculência dos dias de hoje. É como se o Estado brasileiro, na omissão de fazer cumprir o direito internacional e sua própria Constituição, estivesse autorizando os agentes públicos que empregam a tortura como método de investigação criminal.

Afinal de contas, nada aconteceu com aqueles que os antecederam – a maioria dos quais têm aposentadorias pagas por todos nós, inclusive os parentes de suas vítimas. Um dado que referenda isso é o de que os “desaparecidos da democracia” (pessoas que sumiram após abordagem policial) já superam os desaparecidos da ditadura no estado de Goiás. Como bem indagou o Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abraão, de que adianta a verdade sem a justiça? O conhecimento histórico é de pouca serventia se se permite que a história se repita em seus aspectos mais sombrios.

* Rodrigo Gomes da Paixão é jornalista e membro da Articulação de Esquerda do Partido dos Trabalhadores